domingo, 11 de dezembro de 2016

Incógnita

Eu não sou religioso
Mas me sinto tão movido
Tenho vontade de rezar
Pelo tempo perdido

São os pequenos atrasos
As grandes negligências
É a dor que eu engasgo
É a falta de inteligência

E são as velas que acendemos
No meio duma tempestade
Porque ambos imaginemos
E se nem tudo for a Sua vontade

Não acharemos respostas
Para tão insólita equação
Só se quer desaparecer
Extirpar a dor do coração

E no corredor dum hospital
É a dor que temos à mão
No topo de uma estrela
É alto e pesado o coração

segunda-feira, 5 de dezembro de 2016

Por aqui estivemos

Nós andamos pelas ruas
Como se fôssemos realeza
Ainda não amanheceu
Você é sorriso, é tristeza

E quando todos dormem
Você sonha, sonha

Eu dou um passo na lua
Nós cruzamos os dedos
É um salto olímpico
Você cheio de medos

E quando todos dormem
Você sonha, sonha

E todas as coisas mudam
Assumem um ou outro formato
Nós vemos as fotografias
Mas o passado é um contrato

E quando todos dormem
Você sonha, sonha

Nossos cabelos ao vento
Depois nós percebemos
Que quando nada ia bem
Por aqui estivemos

quinta-feira, 3 de novembro de 2016

Fragmento

Cheguei e sentei na cadeira da sala de jantar descompromissado. Já estavam todos presentes.
- Que livro é esse que você anda lendo?
- Macunaíma. Secundei sem emoção.
- Quê? Mais-cu-na-Índia?!
Foram só risos.

Ave Maria

Diz minha vó que havia uma velhinha no interior que morava só. Só, mais um papagaio.
Tinha sempre o cuidado de aparar as asas do bicho para que não voasse e a deixasse sem companhia.
Entretanto, com certa idade, é comum esquecermos as coisas. Não deu outra então: o papagaio acabou fugindo.
A velha ficou triste, estava só. Ficou dias lembrando do bicho, do que ele falava e cantava.
Na verdade, era um papagaio silencioso. Mal falava e também mal cantava. Ela tinha-lhe ensinado, com muito esforço, a cantar ‘Ave Maria’ e era praticamente só isso que cantava.
Semanas passaram e a velhinha sentia mais falta do bicho. Pensava que retornaria a qualquer hora, por isso deixava sempre as janelas abertas.
Começou a tricotar, embora fosse uma atividade da qual não tinha qualquer expertise. Ia para a velha cadeira de balançar e tricotava por horas, sempre olhando as janelas. Naquele dia não foi diferente.
Fazia muito calor. A luz do sol entrava na sala de estar sem nenhuma cortesia. Uma luz branca que, de repente, tornou-se verde.
A velhinha estranhou. Viu a luz verde no chão sem entender muito e, em seguida, ouviu um farfalhado que parecia já conhecer.
Foi até a janela e viu o céu todo verde! Em seguida, ouviu várias vozes em harmonia que cantavam ‘Ave Maria’. Eram vários papagaios! Todos voando e cantando.
A velhinha assistiu ao espetáculo da janela e quando acabou voltou ao tricô. Cheia de idéias.

O Último Momento de Maria Bete

O semblante denunciou, naquela tarde, o incômodo que sentia Maria Bete com o assento do condução. Ela devia só não gostar do amassado que ficava no seu vestido xadrez de linho, pois era fácil perceber que a lotação e a falta de educação dos passageiros não a incomodavam. Era somente o amassado que a importunava.
Maria Bete era uma senhorinha que sempre estava no mesmo ônibus que me levava ao trabalho pela manhã. Sempre bem vestida e perfumada, carregava consigo uma bíblia e um óculos escuro de armação retangular rajada a olho-de-tigre que, quase sempre, usava como tiara para impedir que os cabelos alvos, cacheados e de aspecto vaporoso caíssem sobre a testa enrugada. Era, acima de tudo, elegante.
Todos os dias eu a via sentada no mesmo lugar, ficava a recitar passagens bíblicas ou a cantar canções tristonhas que eram, para mim, um agouro de mau presságio – mas nada de ruim havia acontecido ainda. Era difícil chegar perto de onde ela estava, as pessoas bloqueavam a passagem e eu me contentava em vê-la furtivamente, assim como quem rouba mesmo.
Não sei, na verdade, explicar por que tornei a observá-la. Aconteceu de forma involuntária e periódica. Eu, quando não a via preenchendo a cadeira de costume, sentia-me incomodado pela falta. Meu dia não ia bem e eu pensava no possível encontro de amanhã.
Os dias seguiam e eu ainda, com esmero, a observar aquela senhora que, do longe, despertava-me para o perto. Foi quando, com ônibus vago, consegui, com muita cautela, aproximar-me dela. Nada muito perto, mas também não muito longe. Fiquei próximo o bastante para entender a letra da canção que cantava enfadonhamente. Eu acompanhava o ritmo ditado pela sua voz aveludada quando esse é cessado por uma fala abrupta:
- Senhor quer que eu segure?
Era a primeira vez que eu escutava sua voz natural. O senhor deu as sacolas e ela as encobriu com o corpo cuidadosamente. Cinco minutos depois, ela pediu a bolsa de uma moça que não hesitou em aceitar – apesar de mulheres não entregarem suas bolsas facilmente. Foi fácil perceber que Maria Bete era daqueles passageiros de condução que pediam para segurar tudo que estava por perto e as pessoas, daqueles que não recusavam.
Ela não pediu para segurar minha pasta naquele dia, mas acho que eu não daria. Responderia apaticamente com um sorriso de meia boca: "Não, obrigado". Talvez por desconcerto ou por vaidade. Nem sei.
Noutro dia, mesmo com o ônibus lotado, me aproximei de onde ela estava. A distância era a mesma da do outro dia, eu só queria ouvir o que ela cantava. Uma marchinha de carnaval desafinada! O estranhamento não foi pouco. Não era de costume uma música alegre ser cantada por Maria Bete, não a que eu conhecia. Aproximei-me ainda mais, de modo que pude ver seu rosto melhor, não de um olhar furtivo, mas de um direto, intimidador. Senti que ela notou minha presença.
- Ei, deixe eu segurar sua pasta.
- Claro, muito obrigado.
Não consegui recusar. Entreguei minha pasta de trabalho de couro com uma grande fivela prata com as iniciais de meu nome, um mimo de mamãe, a ela que a deitou em suas coxas acomodando minha bagagem juntamente com a de outros passageiros.
Fiquei, por um vão momento, em alerta e sem nenhuma atitude. Que atitude eu deveria ter? A de um inexpressivo passageiro de ônibus. Mas não era fácil. Eu dirigia, de forma quase involuntária, o olhar para os lábios daquela senhora que gesticulavam aquela melodia com maestria, eu não queria beijá-la, apenas acho que não.
Naquele instante, Maria Bete começou a cantar mais freneticamente a marchinha de carnaval com uma empolgação falsa, ninguém estranhava aquilo, mas eu ficava cada vez mais aflito.
Estava me controlando para não interromper sua canção e perguntar por que não cantava as de costume, mas me controlei: olhei para o teto e tentei não ouvir o que cantava cantarolando mentalmente outra música.
- Ei, senhora, o que é que tá fazendo? Uma mulher perguntou para Maria Bete num tom inconformado.
- Ela está abrindo suas coisas. O senhor sentado ao lado alardeou para todos do ônibus como quem grita "pega ladrão".
De fato, Maria Bete tinha violado a bolsa da moça e já estava com a metade do braço esguio, balançando e sentindo o que havia na bagagem, enquanto os passageiros, inclusive eu, iam ficando indignados com a atitude daquela senhora.
- Senhora, me devolva minhas coisa.
- Pois não, minha filha, pegue. Disse atordoada já fechando e arrumando a bagagem da moça que retomou suas coisas e deslocou-se dali.
As outras pessoas que tinham coisas nas mãos de Maria Bete pediram suas bagagens e afastaram-se dela impressionadas deixando-a sussurrar "por nada" para ninguém, exceto para mim que permaneci como antes impressionado com tudo aquilo.
O percurso longe não findava. Curvas iam e vinham e o subúrbio aparecia e sumia pelas janelas do ônibus, freios e pessoas figuravam em cena com freqüência nauseante.
Uma algazarra mais atrás se formava e os que estavam à frente, incluindo eu, não entendiam bem o que acontecia até que um rapaz moreno com o uniforme de um supermercado falou:
- É um assalto!
E era mesmo. Num instante, três homens armados e munidos de grandes sacolas empurraram a todos e golpearam alguns retirando os seus pertences.
- Continua andando, motorista, se não a gente atira aqui!
Desespero e lástima já haviam sido emanados, quando um dos três já com a sacola cheia de bolsas, celulares, relógios e outros objetos afastou-me para o lado e referiu-se a Maria Bete:
- Anda, senhora, passa essa pasta!
- Meu filho, isso não é seu nem meu. O que você quer com isso?
- Anda, senhora. Quer que eu atire?
Não entendia nada. Aquela senhora que, a pouco tempo, estava com o braço dentro da bolsa de uma moça dizia aquilo para um assaltante armado. Eu, sem ação, disse para entregar, as pessoas do condução reforçavam a mensagem, mas Maria Bete olhava a pasta e a arma do assaltante e parecia entorpecida. Ninguém acreditava naquilo. Eu me perguntava o que aconteceria.
Um dos outros dois, já próximo a porta de descida do ônibus, anunciou:
- Quem não facilitar vai levar chumbo aí, to avisando.
O clima de tensão aumentou. Maria Bete parecia não participar da cena dramática. Eu reforcei:
- Senhora, dê minha pasta a ele, não há nada de importante aí. Nada que eu não possa dar um jeito. Vamos, dê logo, antes que algo de ruim aconteça.
Ela olhou para mim sem entender e continuou imóvel. Tentei puxar minha pasta de volta, mas ela fez força, estava sentada e eu em pé num ônibus em movimento. Ela protegia minha pasta.
Olhei para o assaltante que nos tinha abordado.
- Vamo logo, Erivaldo!
Ele retribuiu o olhar e, em seguida, fechou os olhos com força e atirou. O som do disparo calou muitos outros sons, vozes, gritos, soluços. Todos, atônitos, acompanharam com o olhar os três assaltantes saírem apressados com as sacolas empanturradas, sem levar minha pasta ensangüentada com o sangue de Maria Bete que inevitavelmente estava morta.
- Que cagada que você fez. Gritou furioso um dos assaltes já entrando num carro que devia estar nos acompanhando para dar suporte a esses três.
O motorista estacionou o ônibus e fez as ligações necessárias. Abalados com o acontecido, os passageiros tiveram reações similares, choraram, gritaram, injuriaram. Alguns sentaram na calçada e esperaram outro ônibus, uns saíram a pé sem rumo aparente. Eu fiquei por ali, olhei, com ânsias de vômito, o rosto de Maria Bete e o furo encima da orelha, de onde escorria ainda sangue que tingia seu cabelo alvo.
- Obrigado, Maria Bete.
Dei-lhe esse nome naquele momento, sempre a achei parecida com ele e como não tive oportunidade de descobrir o seu verdadeiro ficou assim mesmo.
Tomei o ônibus junto com os outros passageiros e, logo, cheguei em casa.
Estranhamente nunca mais ouvi falar nesse episódio. Os noticiários locais devem ter ecoado o ocorrido, mas eu não vi. Nem mesmo me procuraram para depor. Os passageiros que presenciaram e que continuavam no ônibus preferiam também não tocar no assunto.

Redação 2009

Todos os animais da fazenda conheciam o cachorro, pois ele sempre aparecia e brincava com todos. Na maioria das vezes, por ter contato com o fazendeiro e com seus parentes, as brincadeiras eram histórias e, até mesmo, encenações de fatos ocorridos com a família.
Entretanto, alguns animais nâo se divertiam tanto. A vaca, que ficava cada vez mais gorda, era amiga do cachorro, mas não gostava das brincadeiras que envolviam o seu dono, pois o respeitava bastante, já que era ele quem a alimentava. Assim, encarava tudo como fofoca de mau gosto.
Certo dia, no estábulo, o cachorro chegou triste dizendo que o fazendeiro ia escolher as vacas gordas para o abate. Apesar de a vaca gorda dizer que era impossível, que o seu dono a amava e a alimentava todo dia por isso, as outras vacas ficaram com medo e já planejavam fugir. O cachorro tentou convencer a amiga a fugir também, dizendo que ajudaria na fuga, mas a vaca não acreditava, achava que tudo era mais uma encenação.
À noite, o estábulo ficou somente com uma vaca gorda, séria, dorminhoca e que teve um triste fim.